Fusca azul
Na correria de juntar os documentos de meu falecido pai, esquecidos em antigas caixas de camisa feitas de papel, apareceu uma tirinha verde e amarelada, lembrando o título de eleitor de antigamente. Não era. Era o documento de propriedade do fusca vermelho que ele teve décadas atrás. Certificado de registro e licenciamento de veículo é o nome correto e não havia versão digital como hoje. Aliás, sem o celular em mãos, não é mais possível se identificar ou comprovar quem somos e por onde vamos. Já somos um código binário impresso em nossos telefones. Conheci bem aquele carrinho, pois foi nele que aprendi a dirigir pouco depois de fazer 18 anos. Não tive muito interesse em seguir adiante com a habilidade e somente perto dos 30 anos é que usei o aprendizado para tirar a carteira de motorista (ou carta, como dizem muitos motoristas aqui em Campinas, mesmo não trabalhando nos correios e não remetendo o documento a ninguém). Ainda acreditava que a bicicleta era o melhor transporte para curtas distâncias, o que foi verdade até os joelhos protestarem.
No estacionamento do supermercado, um fusquinha preto, totalmente descaracterizado, faltando parte do para-choques dianteiro, com 'teto solar' e rodas rebaixadas, pouco lembrou aqueles objetos de colecionador que ainda circulam por aí. Lamentei. Entre as crianças, ver um fusca continua a ser uma brincadeira. Se azul, vale mais. A trovadora Maria Felim bem o sabe e relatou os tapas que recebe dos netos ao comentar postagem anterior em que já havia falado dos fusquinhas de minha vida (https://adilson3paragrafos.blogspot.com/2024/02/diversao.html). A resistência e perenidade desses veículos mostram que realmente foram concebidos como carro popular (é a tradução do alemão para Volkswagen), para aguentar condições distintas de tráfego e que fossem baratos, independente do momento fascista em que o mundo estava. Há uma sociologia do fusca que merece ser estudada. Convido a fazerem o que eu fiz e colocar esse termo (sociologia do fusca) nos buscadores da internet e conferir a miríade de páginas e assuntos que resultam. Da história à política, de Adolf Hitler a Juscelino Kubistchek, está tudo lá.
E um desses assuntos é Pepe Mujica, que dirigia um fusca azul. Na simplicidade de comunista convicto e praticante dizia que os bens materiais precisam ser suficientes, não demasiados. Vive-se, não se acumula. O câncer dele - tal qual de meu pai oito anos atrás - já ia avançado. Faleceu hoje, quando escrevo, um dia triste, mas de morte já esperada. Foi mais um 13 de maio, aniversário de Lima Barreto, a ser lembrado também com a morte de Mujica. A vida é feita de muitas mortes para tão poucos dias. Não, Lima Barreto estava muito longe de possuir um veículo, e se deslocava apenas a pé e com os trens de subúrbio. Tanto é que a primeira crônica inédita que dele descobri relatava que o narrador entrou em um carro e uma pesquisadora desmereceu o achado por dizer que Lima jamais andaria em tal veículo. Nem na ficção. Mas a crônica é de Lima, isso já ficou comprovado, e preciso juntá-la com a outra centena descoberta por mim e por Felipe Rissato para publicarmos esse pedaço ainda desconhecido do escritor da negritude. E nem pensemos em cancelá-lo (como está na moda) porque era machista e misógino.
Oi Adilson, adorei a histórico fusquinha azul. Também brincava assim com meus filhos. E excelentes reflexões, como sempre. Parabéns
ResponderExcluirAchei lindo, comovente toda essa bela descrição do fusca, pois que tive un, era verde, chamei-o de"gafanhoto". Adorei seu artigo Adilson! Sociologia do fusca é genial!!!
ResponderExcluirAmigo Adilson: Amei estes parágrafos falando do "carrinho (ou seria carrão, dado à sua resistência?), no qual aprendi a dirigir, fiz minha prova prática para tirar a carteira de motorista (nem vou comentar em que ano isto ocorreu). kkkk Sempre sonhei ter um Fusca, mas por motivos quaisquer comprava outras marcas e outros modelos e nunca tive o "besourinho". Até hoje continuo levando os tapinhas de meus netos, que sempre avistam um, antes que eu. Sinto-me honrada em ser citada nestes seus parágrafos tão bem escritos e muito interessantes. Grata. Maria Felim
ResponderExcluirQuanta descoberta. O primeiro carro zero que adquiri foi o Fuscão branco( pq tinha o Fusquinha) ,qdo saiu a versão " ocre marajó". Fomos ver a chegada dele. Só alegria e muito bem servidos !!
ResponderExcluirOlá, meu querido confrade e irmão. Que alegria ler o texto com o título com o nome do primeiro carro de meu pai. Há um tempo fiz um conto para ser publicado num jornal da região do Ouro Verde. Foram tantas aventuras naquele carro!
ResponderExcluirEncorajou-me a republicar este conto mas em forma de crônica. Vou reativar o meu Blog da Kris com ele. Muito obrigada por nos brindar com seus escritos semanais.
Custa imaginar Pepe Mujica guerrilheiro, saindo do fusca com arma na mão. Foi o mais doce e humano combatente de que se tem notícia. Passou uma década preso, mais da metade em solitária. Disse que aproveitou o tempo para recordar. Deixou um exemplo de sabedoria. Eu também tenho um fusca. Gostaria de saber dirigi-lo como Mujica fazia. (PSViana)
ResponderExcluirO fusca do meu pai foi um 62 cor cerâmica que serviu de auto-escola para toda a família.
ResponderExcluirNa retomada do Fusca pela clemência de Itamar Franco aos alemães, comprei um azul, muito lindinho. Era movido a alcool (PROALCOL). Tempos depois anunciaram na TV que o Proalcool iria acabar e pensando que o meu fusca iria servir para galinheiro, o vendi rapidinho, ao primeiro comprador que bateu à minha porta às 6 h da manhã, com o anuncio do Correio Popular às mãos. Não tive como recuar, e lá se foi o meu fusquinha, que ainda tinha o baco traseiro envolto pelo plástico de fábrica (mania de pobre). Saudade do meu fusca azul.