Guardando segredos

Creio que o dia da secretária é pouco lembrado. Comemorado a 30 de setembro, era a ocasião em que se dava um cumprimento especial àquelas - sim, eram quase todas mulheres - que faziam funcionar os escritórios e departamentos, por meio de sua organização e atendimentos. Não chegava a lhes dar flores, mas deixava uma frase para registrar a data. Portadoras dos segredos, segundo a etimologia, partilhavam os anseios para que a burocracia funcionasse, ainda mais no tempo em que o papel era o elemento crucial de despachos, memorandos, processos e que tais. Hoje é o dedo trêmulo sobre o teclado, mouses e telas que decide para onde vai o documento, também virtualmente escrito, quiçá por alguma ferramenta da inteligência dita artificial. Os verbos estão no passado porque não acompanhei a modernização de secretarias na última década e talvez faça injustiças. Ser injusto é condição humana piorada quando resultado da falta de conhecimento. 

Elas e todos nós realizamos funções nem sempre valorizadas. A escrita também adentra essa seara, mas quem decide o mérito de um trabalho? Eu gosto dos livros que leio, nem por isso os críticos entendem que são bem escritos. Como medir a qualidade? Pelo que se vende? Os acadêmicos torceram o nariz quando Paulo Coelho adentrou a Academia Brasileira de Letras ao dizer que, mesmo vendendo muito - continua um dos maiores vendedores de livros -, não possuía qualidade para lá estar. A correlação matemática parece ser inversa, pois quanto menos vende, mais literário é. Já li muito Paulo Coelho na juventude, cansei depois do quarto livro, e hoje vejo que não era algo tão profundo quanto um Itamar Vieira Jr ou uma Ana Maria Gonçalves, para ficar em alguns contemporâneos. Na ciência, também incide a dúvida. Qual a métrica? Tudo deve ser contado? O número de citações pelos pares pode estar contaminado com o viés de citar os amigos e conhecidos e deixar outros de fora, uma vez que o embasamento científico para um estudo é múltiplo e disperso. Transformar a ciência em tecnologia é outra possibilidade de aferição de qualidade, mas aí adentramos outra esfera do conhecimento, pois não necessariamente tudo o que se sabe é transformado em algum produto ou serviço. Muito segredo intelectual continua guardado em gavetas e computadores. O capitalismo não é natural como a ciência é.

Mesclando literatura e ciência, confidencio um segredo. A real satisfação para uma professor é ver seus alunos chegarem mais longe do que você foi. Meu mérito pessoal é ver os que passaram pelos meus laboratórios ganharem o mundo sendo cientistas em outros países, universidades, indústrias, escolas. Minhas oscilações pessoais não permitiram a consolidação em lugar único. Isso não causaria espanto na Europa ou nos países anglófonos, mas o brasileiro possui ainda vínculos com uma passado recente de fixação até a aposentadoria em instituição única, estampada nos dizeres da carteira de trabalho, recomendando não ficar saltando de emprego em emprego. Sim, isso mudou bastante, ainda bem, mas ainda é um tabu. E, assim, devo buscar nesses méritos algum alento para o momento crítico, talvez outra inflexão, feito meu conto "Canto", a ser publicado na edição da revista Phoenix Campinense da Academia Campinense de Letras. Não está no site ainda, mas fica o link para quando o próximo número sair, até o final do ano: https://academiacampinensedeletras.org/revista-phoenix/.

Comentários

  1. MUITO BOM ARTIGO . BOA REFLEXAO SOBRE VALORES NOEDIR STOLF , PROF EMERITO E SENIOR FAC MED UNIV SAO PAULO

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  2. Muito bom como sempre. Gosto muito do seu humor refinado.

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