Histórias

Meu pai já estava doente quando lhe dei um caderninho de capa azul para que ali anotasse suas recordações de vida. Ralhou comigo, como era peculiar em função do sangue majoritariamente espanhol, dizendo que tais histórias seriam dele e não teriam importância para mais ninguém. Seriam coisas muito simples e banais. Tentei explicar que a história do mundo eram as histórias de cada um e a dele seria, em parte, a minha também. A contragosto aceitou. Uma dose de egoísmo de minha parte envolvia aquele pedido/presente. Eu queria saber um pouco mais dos detalhes de causos por ele vividos e que nos contava esporadicamente. Na escrita ele era mais atencioso e detalhista, ainda que o estudo formal se encerrara antes do que hoje se chama ensino fundamental. No entanto, o câncer foi mais rápido e não deu tempo de ele escrever uma linha sequer. Meu pai não viu o neto mais novo nascer, nem o do meio morrer. Teria mais um pouco de alegria e muita tristeza para vivenciar, como todos nós tivemos. Ainda temos, o luto é muito recente. O caderno deve ter ficado esquecido entre outros pertences e assimilou outra história, a do papel que se amarela sem uso. 

A memória afetiva diz que conheci a Lúcia Helena no ônibus. Posso estar enganado, poderia ser outra simpática de largo sorriso e franca conversa. Hoje ela diz que sim, ou melhor, talvez; eu tento me ancorar naquela imagem para apresentar-me como o amigo que segurava seus livros e cadernos no lotado ônibus tomatão (pois era todo pintado de vermelho vivo) que ia do centro da cidade para a Unicamp. Não havia moradia estudantil em Barão Geraldo, nem repúblicas eram permitidas, em função do custo de um aluguel naquela época. A universidade e cercanias mantinham alunos somente durante o dia, pois nem curso noturno havia. E foi pela química do papel que Lúcia e eu travamos uma dessas interlocuções, caso minha memória não me engane. O fato é certo, os interlocutores é que podem ser diversos. Ela pesquisava documentos antigos, cursando História que estava. Com certo espanto dizia que meu curso era muito difícil e os etc e tais costumeiros. Certa vez, veio até mim dentro da condução, eufórica, para contar que estava fazendo um curso de preservação de documentos e o tema principal era a química do papel.

Outras histórias mais antigas ou recentes estão sendo contadas e as efemérides continuam a ser um bom fio condutor. Tenho um balanço crítico desses dias, mas há que se registrar que o 14 de março foi o dia festivo do número pi (3,14...), diversas vezes lembrado, mas também os cinco anos da morte de Marielle Franco e Anderson Gomes (http://adilson3paragrafos.blogspot.com/2019/03/mortes-em-circulos.html). Enquanto não resolvermos os crimes de nossa sociedade, quer sejam os recentes, individuais, ou os antigos, que feriram por inteiro nosso país, pouco avançaremos na convivência pacífica entre tanta diversidade. Sinais melhores estão aparecendo, muito bom, mas a velocidade de solução deveria seguir o modelo retratado pelo Argentina, 1985, histórico e necessário, indicado ao Oscar de filme estrangeiro (ou falado em outra língua que não a de Shakespeare). Os vizinhos resolveram - ainda que em parte -, de forma rápida, suas querelas militares do passado.

Comentários

  1. Maria Cristina de Oliveira15 de março de 2023 às 17:47

    Parabéns pela nova publicação. Gosto muito de suas histórias e "causos". Sua dedicação na manutenção do blog é admirável

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  2. Sempre gostei de ouvir "causos", desde criança. E continuo gostando, principalmente quando são contados, assim, com maestria. Maria Felim

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  3. A escrita pode ser terapêutica. Tenho de meu avô Breno Vianna um volume entitulado "Musa Anciã", que guardo com o maior carinho. Um pouco dele permanece ali. O texto ajuda a viver. (Paulo S. Viana)

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