Retratos em branco e preto
Foi-se Sebastião Salgado e sua doce e amarga interpretação da realidade. Basta o artista morrer para aflorar a lembrança de sua obra. Triste, mas real. Parece que nos retraímos ao referenciar os intérpretes do mundo quando ainda vivem. Precisamos reverter tal tendência, pois, por mais inexorável e abundante que a morte seja, há tempo para viver. E são muitas as vidas vividas e vívidas que tornam símbolos, como foi a de nosso cosmopolita fotógrafo brasileiro. Nas redes sociais pipocam anônimos ao lado de Sebastião Salgado, provando que lá estiveram e um átimo de tempo puderam com ele compartilhar. Não tenho fotos com ele, nunca me aproximei, mas tenho as fotos dele em belos livros e intensas memórias. Das minhas anotações - em cadernos, rascunhos e arquivos digitais - constato que fui admirador totalmente passivo de sua obra, uma vez que não encontrei sequer uma linha de comentário a algum lançamento ou reportagem. Essa ausência de palavras não joga nenhuma luz sobre a importância dele para mim. Foi pura falta de oportunidade, compensada em parte agora.
Junto à arte da fotografia, cabe uma reflexão acerca dos tempos passados e o que a arte pode selecionar. Um exemplo singular foi o branqueamento de negros ao longo da história, com a justificativa de que a sensibilidade dos negativos antigos era ajustada à pele clara e, por isso, eles, os negros, eram retratados com a pele quase branca, o que se comprovou mais uma das falácias eugênicas. A arte de fotografar é centrada no olho de quem opera a máquina e o processo fotoquímico posterior mistura ciência e política. Sim, ciência e política. Basta uma consulta rápida a manuais ou à onipresente internet para saber o que é excitação fotoeletrônica e a transformação de uma substância em outra no filme fotográfico, e todo o processo de revelação e cópia do negativo, em que uma outra foto será feita em papel. A parte científica está resolvida. Mas dosar a intensidade das cores - ou ausência delas - faz parte da vontade da revelação, tal qual o dedo que mexe o botão do volume para mais ou menos som. E aí vem a parte política. Assim, a arte que começa com a excitação (do artista e dos elétrons) chegará à revelação da qualidade do retratado e da vontade do retratante. Mesmo com a ciência exata aprende-se um pouco das ciências humanas.
Tentei fotografar em branco e preto uma vez. É muito mais difícil, uma vez que a luz não se divide nos múltiplos comprimentos de onda a enganar cones e bastonetes no fundo da retina. Posicionar corretamente a luz é o que produzirá a boa foto. Sebastião Salgado possuía o olho que antevia a fotografia. Até Euclydes da Cunha escreveu "Se acaso uma alma se fotografasse / de modo que nos mesmos negativos / a mesma luz pusesse em traços vivos / o nosso coração e a nossa face". Sim, o autor de Os Sertões foi poeta também, ainda que prolixo na juventude e restrito na vida de engenheiro e escritor de coisas sérias. O poema é belo, por mais inexistente que seja a alma... Mas respeitemos o artista e vemos que Sebastião Salgado registrava a alma do mundo ou tinha a alma do mundo em si a registrá-lo. É da vida, assim, 'outro retrato em branco e preto a maltratar meu coração', dito por Chico Buarque, outro poeta da canção. No jogo de luzes, deixemos para o computador resolver a questão, uma vez que os milhares de tons que os pixels registram são muito mais sensíveis do que nossos olhos. A máquina vê mais do que a nossa realidade. Triste e preocupante isso, não é?
Belo texto, bela homenagem ao grande fotógrafo. Com certeza, ele iria apreciar.
ResponderExcluirMuito bom. Parabéns!
ResponderExcluirMuito interessante a homenagem feita ao grande artista "das fotografias", por este talentoso cientista/escritor, nestes três parágrafos. Parabéns Adilson.
ResponderExcluirMaria Felim
Adilson, que leveza de texto para homenagear o talentoso e paciente fotógrafo Sebastião Salgado. Cada um tem seus talentos.
ResponderExcluirVocê possui grande fluência para escrever e descrever o que sabe e o que sente, além dos conhecimentos adquiridos em sua formação profissional.
Procurei o soneto de Euclides da Cunha, que é bem adequado para fazer parte do seu blog. Você o conhece inteiro?
Parabéns! Estou adorando ler o seu blog!
Tive uma câmera Asahi Pentax que fotografava em p &b. Só ficaria sabendo se a foto saiu como imaginava mentalmente após a revelação do negativo. E era filme em rolo.
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