Malhação do blog

Um dos textos mais bonitos de Euclydes da Cunha é Judas Asverus, que relata a malhação do boneco representando o traidor mais conhecido de norte a sul, de leste a oeste, de muçulmanos a católicos, passando por judeus e venerandos ateus. Não é à toa que o Judas é assim considerado e seu nome virou sinônimo do que é. Pude ler alguns trechos da crônica de Euclydes nas palestras que dei este ano sobre o autor de Os Sertões, ressaltando que estava apresentando outros textos dele, incluindo estudos sobre a Amazônia, a geopolítica mundial (de um século atrás e que se mantém grosso modo até hoje) e a forma como a República havia sido plasmada de forma conturbada a partir de um Império já claudicante. A professora Anabelle Loivos Considera, da UFRJ, defende em seu grupo de estudos sobre Euclydes da Cunha que falta na formação de professores de literatura o estímulo à leitura. Assisti a uma leitura dela de Judas Asverus e foi arrepiante. Discutimos muito e lemos pouco nossos autores. E a leitura deve ser feita em voz alta para sentir a força das palavras ditas e ouvidas. Ailton Krenak já nos havia ensinado que antes das palavras escritas, elas foram ouvidas. E antes de ouvi-las, alguém as disse porque as viveu. Façamos nossos jovens viverem as palavras de outrem para que descubram as suas próprias.

O texto de Euclydes é de domínio público e pode ser encontrado no site http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp, fazendo-se uma pesquisa pelo livro À margem da história, em que Judas Asverus foi incluído. O Judas da crônica é malhado a tiros em cima de uma pequena canoa, fazendo parte das cerimônias de Páscoa das comunidades ribeirinhas da Amazônia. O livro disponível no site, porém, não é uma versão das mais perfeitas, uma vez que incorreções aconteceram na edição original que foram perpetuadas ao longo do tempo. Para quem quiser desfrutar a mais fina versão - e investir alguns reais -, recomendo o estudo mais recente em edição de 2019 da Unesp, tendo como organizadores e autores do estudo crítico de revisão Leopoldo M. Bernucci, Francisco Foot Hardman e Felipe Pereira Rissato. Lembremos que À margem da história é um livro publicado postumamente, mas que contém tudo o que o autor determinou ainda em vida; contudo não passou por seu crivo e correções finais. Isso porque, antes da edição do livro, Euclydes foi morto por Dilermando de Assis, o amante de sua esposa. Vidinha interessante e complicada teve Euclydes, mas são aspectos que refogem à literatura, ainda que causem mais expectativa do que a monumental obra que ele produziu.

O blog sai no meio de um feriado emendado, contendo dias santos para resguardo, santos dias para descanso, além de dias cívicos para reflexões necessárias, enquanto o mundo arde em desvarios retrógrados. De minha parte, a escrita é feita em Portugal, participando de um congresso internacional na área de polímeros, postada logo após minha apresentação que se deu na sexta bem cedo, ainda madrugada no Brasil. A diferença de fuso horário só acontece porque a terra é redonda, por mais que queiram negar. Sim, a negação é polimórfica, feito alguns polímeros, indo das vacinas à própria história. Neste tradicional congresso, é marcante a ausência quase total de norte-americanos. Houve apenas um habitante dos Estados Unidos apresentando oralmente seu trabalho. As informações, ainda que veladas, dão conta que muitos cientistas cancelaram a vinda a Portugal ou nem cogitaram vir devido às restrições impostas por Donald Trump. Sinal de tempos sombrios. Malhem-me, malhem-me, seguirei pelo rio, descendo, descendo.

Comentários

  1. Parabéns Adilson. Nada melhor do que relembrar Eucclydes e apreciar sua obra.

    ResponderExcluir
  2. Excelente! Parabéns ! Ótimos dias em Portugal !

    ResponderExcluir
  3. É isso, Adilson. O fonema precede a sílaba e, ao ler, reverberamos mentalmente o som. Gostei demais do seu texto! Eu estudo bastante a obra de Euclides.

    ResponderExcluir
  4. Com todos os seus artigos, este também foi ótimo. E me chama a atenção um detalhe sobre o qual início um projeto: a oralidade. Recuperar costumes antigos, quando a história era passada verbalmente, de pai para filho, é de suma importância na época em que vivemos, onde a leitura é relegada ao esquecimento, em detrimento de novas tecnologias.

    ResponderExcluir
  5. estou estreando meu novo computador

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

É Praga!

A mãe dos fatos

Desfrutando