Voos efêmeros e coincidentes

O químico Francisco Carlos Nart morreu na queda do voo Gol 1907, que se chocou com um jato Legacy em 29 de setembro de 2006. Ele estava em Manaus trabalhando na análise de novos cursos de pós-graduação, e, segundo colegas que participavam da avaliação com ele, acabara a análise de projetos mais cedo e resolveu antecipar sua volta a São Paulo para retomar suas atividades de pesquisa na Ufscar. Foi uma das 154 pessoas mortas naquela tragédia. Dias depois, eu recebi um projeto da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) para analisar e os olhos tremeram ao ler como responsável pelo departamento o nome do Chico Nart, como era conhecido. Feito uma cápsula do tempo, tratei de olhar aquele material, demorando-me na folha com sua assinatura. Eram tempos em que o papel impresso imperava, a documentação em arquivos pdf estava na iminência de acontecer, mas demoraria alguns anos para ser quase exclusiva. Tocando o papel com o relevo da assinatura, senti que a sensação da efemeridade da vida é sempre deprimente.

No último dia 13 de agosto, completaram-se dez anos da morte de Eduardo Campos, então candidato à Presidência da República, vítima de outro acidente aéreo. Em carta para a revista piauí no mês anterior, critiquei a forma como ele se apresentava, postulando uma inexistente terceira via, traindo a expressiva participação no governo anterior de Lula em que fora Ministro da Ciência e Tecnologia. Emblematicamente, a carta sai publicada na edição do mês de sua morte. Aquele período, agosto e setembro de 2014, estava repleto de coincidências, pois foi quando Artur Ávila ganhou a Medalha Fields, nosso Nobel de Matemática, e a mesma revista piauí fazia um perfil de Delfim Netto, falecido por estes dias. Na tragédia de mais um acidente aéreo, agora em Vinhedo, próximo a Campinas, com todo respeito à crença e à religiosidade de cada um, chama a atenção a natureza egoísta dos seres divinos exaltada pelos que neles creem. Ou seja, a mesma entidade divina propiciou a morte de 62 pessoas para dar sobrevida a uma dúzia que perdeu o voo da Voepass? É claro que, em face da iminência da morte, somos incapazes de manter a lucidez e a coerência, mas, quando analisamos o mítico e o místico em outros momentos sociais, entendemos por que a sociedade está tão radicalizada em suas convicções, abandonando os fatos.

Avião é o meio de transporte mais seguro. É uma tragédia quando um acidente aéreo acontece, mas morrem muito mais pessoas em desastres automotivos e rodoviários. Por outro lado, o impacto e a comoção são maiores no desastre com avião. Os dados, a lógica, as estatísticas mostram e comprovam o argumento. É fácil comparar e pensar em quantas pessoas conhecemos que morreram em acidentes automobilísticos em carros, ônibus, motos. Poucas são as que conhecemos pessoalmente mortas em desastres aéreos. São normalmente mais conhecidas por terem alguma projeção social devido às diferenças econômicas entre quem costumeiramente viaja de avião e os que usam ônibus e outros transportes terrestres. De qualquer forma lembremos que no ápice da pandemia da Covid-19 morriam por dia no Brasil o equivalente a quatro Boeings-737 lotados caindo ou explodindo, com letalidade total, do tipo do voo da Gol de 2006. Quatro Boeings diários! Sensibilizava parte da população, não o governo que estava de plantão.

Comentários

  1. Pensar na efemeridade da vida é sempre deprimente e nos refletir para o que viemos. Títulos, diplomas, cargos, bens materiais, arrogância... nada disso impede que todos tenhamos o mesmo destino: a morte; mais cedo ou mais tarde, natural ou acidental a única certeza é esta.

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