Alguma literatura

Dou um puxão de orelha, metafórico para não provocar processo por agressão física ou assédio moral. Mas a coça é em mim mesmo - e talvez não valha a regra repressora. Fato é que não tenho escrito contos, poemas e outras ficções a contento, parecendo que as lutas intestinas de argumentos e decepções não encontram escape fora da realidade e se acumulam na forma de colesteróis, triglicérides, glicose e outros compostos químicos tenebrosos. E não falo de sublime literatura para a escrita, nem de corpo sarado para o físico. Caminhar com a cachorra Indy a meia hora noturna, todo dia, não está sendo suficiente, é o que o exame de sangue friamente revela. Moléculas e palavras para serem liberadas não faltam, o que seria um anestésico dos mais viciantes e desejáveis. Mas o que pressiona é o tempo. Vejam só, duas grandezas físicas das mais usadas na ciência são as que atentam contra a felicidade! Na ciência, pressão e tempo (o do relógio, não o do clima) não aparecem juntos de forma explícita, talvez um álibi para não serem condenados... 

Neste 5 de outubro completam-se 35 anos da Constituição Cidadã, um marco para quem viveu os tempos finais dos anos de chumbo e entendeu na adolescência a necessidade do poder voltar às mãos do povo. Ou, pelo menos, que nós, o povo, estivéssemos mais próximos das decisões e que os representantes trabalhassem por elas. O povo deveria viver as consequências das escolhas pelo suor, não pelo sangue. Minha primeira visita a Brasília foi em julho de 1987, em pleno andamento da Constituinte, quando participei de reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Pude visitar o Congresso Nacional e, da galeria lá em cima, ver a atuação de um deputado, futuro presidente do Brasil. O dia de hoje foi também marcado pela histórica eleição de Ailton Krenak para a Academia Brasileira de Letras, o primeiro indígena a adentrar a centenária instituição. Minha torcida, meu apoio, era por Daniel Munduruku, mas parece que há outros acordos e arranjos mais altos do que a musa canta, que demandam certos encantos pelos cantos das conversas decisórias. Que Krenak seja apenas o primeiro representante dos povos originários na instituição que defende a última flor do Lácio no lado de cá do Atlântico, e que a lembrança a línguas como as do grupo tupi-guarani não se resuma apenas na explicação da origem dos topônimos brasileiros.

São dias em que também se completam os 25 anos do Prêmio Nobel de Literatura para José Saramago, até aqui o único escritor em língua portuguesa laureado. Neste 2023 o escritor norueguês Jon Fosse foi o contemplado. Pouco conhecido no Brasil, a premiação trará, como sempre, a oportunidade de lê-lo. Para mim, isso é comum com os premiados em línguas e de países não centrais. Em um grupo cultural do qual participo houve uma discussão acerca da importância do Nobel e do premiado. Sem adentrar à crítica, afirmei que nosso conhecimento literário é limitado ao que nos chega ou ao que buscamos em nossa própria língua. Isso é reflexo do que eu penso e pratico, que fique claro. Ponho-me a refletir o quanto sei da literatura da África Central, por exemplo. Será que aqueles povos escrevem mais sobre suas origens e história ou sobre suas angústias, medos e indignações? Usam as línguas nativas, dos povos originários de lá, ou a colonização ficou tão arraigada que só é possível pensar em francês, inglês, alemão, holandês, árabe? Alguma outra filosofia distinta do binômio oriental-ocidental? Simplesmente não sei. Quando nos surpreendemos ao saber de um europeu mediano que desconhece Machado de Assis e Jorge Amado temos de considerar a distância no tempo e no espaço em que a literatura acontece.

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