Infância cíclica

Filmes que dão medo ou que nos fazem pensar parecem ser os melhores. Há também os de ficção científica produzidos acima da barreira do pastelão de efeitos especiais. Cinema de qualidade não é entretenimento, dizem os especialistas, mas eu sou um mero espectador, então entretenho-me em assisti-los. A proibição por faixa etária que vem junto ao filme é o maior chamariz para despertar curiosidade do que estão escondendo dos mais jovens. Tirando filmes pornográficos que estão em outra esfera de "curiosidade pelo conhecimento", filmes mais sérios são frustrantes quando a expectativa por vê-los devido às proibições é maior do que a realidade depois de vistos. A pergunta que resta é por que uma criança não pôde ver isso agora, mas um ou dois anos depois será permitido ao jovem dali resultante? Algumas passagens com linguagem inapropriada ou cenas de erotismo, talvez nudez, justificam a proibição. Mas não parece nada diferente daquilo com que boa parte dos jovens tem contato no mundo real - e violento - em que vivem. Dois desses bons filmes, O Exorcista e Operação França foram dirigidos por William Friedkin, que acaba de falecer devido a pneumonia que levou a insuficiência cardíaca. Perda que dará vontade de assistir a eles de novo.

Voltamos a ser crianças ou a ter vontade de voltar a sê-las. Quando lemos, viajamos por mundos muito além da Taprobana, tornando-nos uma criança que lê. Que bom não precisar revelar o jovem coração palpitando pela vida, ainda que onírica, que salta das linhas de um livro. Sendo de filmes e de sonhos literários que falamos, um filme que calha muito bem é Inception, que, para irritar, foi aqui "traduzido" como A Origem (https://www.imdb.com/title/tt1375666/?ref_=nv_sr_srsg_0_tt_8_nm_0_q_inseption). Sonhos dentro de sonhos, com a possibilidade de inserção de uma ideia primitiva na mente do sonhador, são a temática do belo filme. Uma única vez tive uma experiência semelhante de acordar e continuar dentro do sonho, outro cenário, tendo de acordar mais uma vez para voltar ao que chamamos de realidade. O filme precisa de um químico para formular as melhores drogas soníferas que deem conta dessas camadas. Apesar da profissão, não usei de substâncias para minha experiência. São apenas sonhos e vidas cíclicas, que retornam ao período da infância para resgatar o que talvez nunca tenha saído de nós.

Ênio e Beto (adaptação de Ernie e Bert originais) eram os personagens dos quais mais tenho lembrança. Tinha os bonequinhos coloridos em papel cartão e que causavam muito apreço, sem ter aquele preço comercial de quase tudo o que se alevanta. Propaganda sempre houve, talvez filtrávamos mais os artefatos vendáveis ou não tínhamos mesmo qualquer condição de aquisição, restando, portanto, apenas o entretenimento. Vila Sésamo era do conjunto de programas de qualidade, que Rá-tim-bum e seu Castelo trouxeram muito tempo depois e pude com eles novamente me deleitar, então com as crianças da casa. Crianças que já não existem mais nessa forma lúdica e pueril. Adultos que se adulteraram-se. Quando a inteligência se dedica, programas criativos e educativos surgem adentrando a programação infantil. Beto e Ênio eram personagens de Vila Sésamo. Aracy Balabanian trabalhava ali também, mas da atriz nesse papel, que também faleceu por esses dias, quase não tenho lembranças.

Comentários

  1. Ótimos parágrafos.
    Tão bom ser criança .

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  2. O bom de tudo é ter lembranças, seu texto faz com que tenhamos lembranças de bons e instigantes momentos, coisa que recentemente esta difícil devido aos filmes e programas exibidos! Algo se perdeu no correr do tempo na imaginação dos criadores de conteúdo.

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  3. Adilson, meus parabéns pelo seu Blog e pelos seus ótimos parágrafos .
    Meu irmão, que era cinéfilo, ia adorar seus comentários .
    Um grande abraço.
    Magda Helena

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  4. Até nossas recordações desfilam às vezes como filmes. Feliz aquele que recorda ao som de bela trilha sonora. (PSViana)

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  5. Videos e filmes têm um gravíssimo problema: as imagens se sucedem em geral muito rapidamente, o que impede que se pense em cada imagem. Com isso, o pensamento consciente é abafado, restando apenas um vago pensamento intuitivo (por exemplo, reconhecer que há uma imagem de um carro, mas não se pode pensar nos detalhes dele pois outra imagem já a substituiu). Isso significa um abafamento do pensar e, portanto, da consciência. Ora, o pensamento é o que a humanidade mais desenvolveu. Olhe-se ao redor: a menos de minerais, plantas e pessoas, tudo, absolutamente tudo foi pensado (principalmente nas cidades). Por outro lado, compare-se com a leitura: ela força prestar-se atenção no conteúdo. Quantas vezes vocês leram um parágrafo e no fim se perguntaram "O que li mesmo?" É que deixaram de prestar atenção, e devem ter recomeçado do começo concentrando-se para compreender o conteúdo. Assim, a leitura força a concentração mental, vídeos e filmes prejudicam a concentração mental que, aliás, está sendo decisivamente prejudicada pelos aparelhos com tela. As pessoas estão se viciando em se distrair e não conseguem mas se concentrar, por exemplo ler algo com mais do que duas páginas (ver o excelente livro do Nicholas Carr, "A geração superficial"). Vejam-se artigos em meu site, por exemplo
    http://www.ime.usp.br/~vwsetzer/meios-educacao-sintese.pdf
    e o excelente livro de Michel Desmurget "A fábrica de cretinos digitais".
    Tudo isso é muito ruim para adultos, e um verdadeiro desastre para crianças e jovens. É parte do esforço de destruir a humanidade, e não há maneira mais eficiente de destruí-la psicologicamente do que atingir crianças e jovens.

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