Sonhos reais e vida fictícia

Ao acordar, tenho a sensação de que algo pesa em minha cabeça. A lembrança é a do sonho em que fui expulso de minha sala de trabalho, com uma ponta de crueldade ao deixarem alguns documentos sobre uma mesa para lembrar que realmente era meu o espaço e que foi ocupado por outros. Jogado fora? Colocado em outro lugar? A matéria de meu passado empoeirado ficou sem destino certo, pois acordei. Transformar poeira do passado em concreto do futuro segue como constante objetivo, de olhos fechados ou abertos. O momento de forte interação do subconsciente com o consciente é objeto de estudos, alguns sérios, outros beirando a pseudociência. Gostaria de entender-me melhor para saber o que esses neurônios sonolentos dizem, se é que há alguma mensagem nos filmes vivenciados todas as noites. Quando espantosos, são registrados no caderno de capa vermelha, que já foi preto, amarelo, multicor. Ao descrever o sonho, creio que um dia posso sabê-lo melhor. É a sina de todo pretenso escritor: seus sonhos virarem parte da ficção da vida.

Foi feriado naquele país de bandeira vermelha (e azul) do norte do continente à qual indizíveis conterrâneos bateram continência quatro anos atrás em crime de lesa-pátria. O que se passa em terras gringas torna-se uma realidade que muito assusta devido a outros crimes de sangue que estão sendo lá cometidos em suposta comemoração pela data da independência. O acesso quase irrestrito a armas não poderia resultar em outra coisa, pois a brutalidade das mãos apenas reflete o vazio cerebral e corações empetrecidos. Aqui o inverno força a levantar da cama com os devidos protestos, mas o ganha-pão se faz também necessário, uma vez que o salário não vem do partido, nem do ilícito. Férias são somente para alunos, pois a vida acadêmica é contínua e real. Não quero mais falar das coisas que aprendi nos sonhos, ainda que viver pareça ser melhor do que sonhar.

Elis Regina voltando à vida em propaganda da Volkswagen foi um dos assuntos que movimentaram redes sociais, sites de notícias e os grupos familiares. A primeira discussão foi acerca da pertinência de usar música de protesto para divulgar um dos literais veículos da ditadura militar. Dinheiro é a mola propulsora do vil mundo em que vivemos, eis a resposta imediata. Ouvi a música e o resultado da ferramenta de inteligência artificial para recriar o rosto de Elis, sim, artificial como o rótulo indica, que chama a atenção e provoca alguma nostalgia. No entanto, muito mais impactante foi ouvir a voz de Maria Rita na abertura da novela Senhora do Destino em 2004, cantando "Encontros e despedidas", que praticamente não se diferenciava da voz da mãe, um pouco mais nasalada. Aquilo me causou espanto. A vida segue e até hinos de combate aos plúmbeos períodos foram usados por extremistas da direita. Quando adentrei a universidade, a sensação do momento foi a liberação da venda em bancas de jornais e revistas de uma edição do Capital, daquele velhinho simpático, o Karl Marx. Se não me engano, foi pela Abril Cultural e avaliaram que foi um dos maiores lucros da editora. O Capital a serviço do capitalismo, portanto.

Comentários

  1. Parabéns pelos parágrafos! O primeiro deles trouxe à tona um assunto que me "encafifa" desde sempre: os sonhos - melhor dizendo: o significado deles. É algo que eu sempre quis saber, mas, ainda, não encontrei a resposta.
    Maria Felim

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  2. Parabéns, Adilson, pelo texto lúcido, atual e perspicaz. Um cientista que escreve ou um escritor que faz ciência? Abraços saudosos desde Lorena.

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  3. Adilson, nosso "escritório" cerebral não interrompe expediente nem para dormir. Os sonhos fazem suas estripulias e nos deixam reflexivos. Afinal, o que têm intenção de nos revelar. Os psicanalistas explicam que são a expressão de desejos reprimidos. É, pode ser. Afinal, nesse ambiente secreto, onde estão confinadas essas imagens, não imperam as leis ou regras, não há fiscalização ou penalizações. A única defesa do sonho é sua fugacidade, sua efemeridade, e rapidamente o esquecemos. Parabéns pelos parágrafos, muito interessantes.

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  4. Obrigado, meu caro. Seus textos, além de agradáveis à leitura, trazem oportunidades de boas (e necessárias) reflexões. Abraço. Perinotto

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