Parentes na leitura

Mudaram o X da questão, mas a resposta difusa continua a mesma na rede (anti)social que o abriga. Em outra rede, os amigos do Facebook são limitados a 5 mil. Não que ajude muito na seleção para alguma conversa animada, que não seja de ódio, propaganda ou limitada a grunhidos cibernéticos na forma de carinhas e joinhas. Há os que criam outros perfis para aumentar sua gama de contatos. Os amigos reais são medidos à base de centésimos daquele valor. Ou milésimos. Em outros espaços mais pragmáticos, como o LinkedIn, os contatos são assim chamados, nada de amigos e pouco de vida pessoal para ostentar. Todos posam com os braços cruzados à frente do corpo, trajando blazers e terninhos. A dimensão da amizade virtual me leva a refletir que tenho mais primos do que amigos. Pai e mãe, cada um, tiveram uma dezena de irmãos, todos convertidos em tios, todos casados e todos com prole média de três filhos para cada um. Ou seja, tenho cerca de 60 primos! Não vou considerar aqui os que foram surgindo nas gerações seguintes, os chamados primos de primeiro grau, segundo grau, nem os primos de meus pais, seus filhos, e por aí vai. Eu tenho tantos primos, que não os posso contar, lembrando a música, com o devido perdão pela subversão.

O dia dos avós é feriado em Pedreira, minha cidade natal em que mora a esmagadora maioria desses primos e tios ainda vivos. Santana é a padroeira de lá e, antes, julho era um mês da festa da santa junto com a feira industrial voltada à porcelana, marca da cidade daquele tempo, antes da invasão dos produtos chineses. Era um acontecimento. Em muitas férias escolares, eu ficava alguns dias em visita a tios e avós, deleitando-me pela cidade. Também achava que no aconchego da casa da vó, dormindo com as tias solteiras, na mesma cama enorme, teria tranquilidade para colocar as leituras escolares obrigatórias. Dessa tentativa restou apenas a frustração de não conseguir passar da primeira página de Inocência, do Visconde de Taunay (lembro de frase "gente chã e hospitaleira"), da Editora Ática, livros de capa preta e letra miúda. Nas saídas com primos, após ida ao cinema, aprendi a tomar leite com groselha no Baséio, se a memória não me falha. Descubro que um pouco disso ainda restou e um dos primos diz que até foi comer pastel na praça no feriado de quarta-feira.

Os escrevinhadores perto de seu dia e no dia dos avós buscam mais leitura do que escrita, ao menos é o meu desejo. Para cada palavra escrita, quantas foram lidas? As bibliotecas compartilham tesouros que são descobertos de maneiras diferentes toda vez que um leitor delas se aproxima. Mas alguém precisou escrever aqueles tomos. Sabiam eles o quanto leram para conceber suas obras? E se retrocedêssemos cada livro/escritor a seus antecessores e estabelecêssemos a origem do pensamento? Quando haveria o livro original, não baseado em nenhum outro anterior? Conteria ele todo o conhecimento bruto que originou outros saberes? Isso beira a crença e sabemos que os chamados livros sagrados contêm essa prerrogativa e os mais radicais dirão que nenhum conhecimento adicional poderia ser criado desde então. Mas, colocando os pés no chão, retorno a uma questão mais simples, a das referências usadas para compor novas interpretações. Nesses tempos em que robôs são treinados para escrever, parece que o digitar no teclado ficou obsoleto. Ainda somos nós os que pensam o conteúdo, mas aquelas palavrinhas escolhidas já são exclusivamente nossas?

Comentários

  1. Como é prazerosa a leitura desses suaves, densos, sensíveis parágrafos. Eu me vejo neles. Gratidão, meu caro.

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  2. Como sempre, você arrasa em suas colocações, sejam elas sobre o assunto que gor. Gosto muito.

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  3. Adilson: a leitura de seus textos é tão "gostosa", (se é que posso assim dizer) que a gente parece navegar num oceano de palavras, dentro de diversos assuntos. Gostei da referência aos parentes e amei o que foi dito sobre os livros e a escrita, mas também eu não tenho nenhuma resposta para as perguntas ali deixadas...
    Maria Felim

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