Conforto ao frio

Um gato no meio das pernas à noite é sinal que a temperatura baixou. A troca de calor esquenta ao menos parte do corpo, mas o felino se acomoda de um jeito que fica difícil se mexer. Os repuxos da perna ruim são inevitáveis, quando não são as duas que resolvem deixar claro que os joelhos doem. Em algum momento da madrugada, com tanta movimentação, o gato desiste e vai atrás de outro humano acolhedor. E que seja mais estático. Dormir, sim, esquentar-se também, mas sem solavancos, é o pedido por trás da felinicidade que o animal exala. Quem tem bichanos por perto sabe de sua natureza peculiar e necessária para preencher vazios em espaços que são seus. Ali estamos como coadjuvantes. Não por menos um gato foi uma das imagens que ilustraram a capa da coletânea da Unesp com crônicas selecionadas na e sobre a pandemia. Pelas ruas, no entanto, a urbanidade perde protagonismo, é excludente e os que ali padecem do frio despertam algum calor humano, insuficiente.

Gosto do frio, não apenas porque se aproxima da época em que vim ao mundo, mas porque o organismo reluta em trabalhar com muito calor. Não que trabalhar seja a melhor atividade humana a praticar, mas fomos convencidos de sua necessidade e ficamos com poucos argumentos para contrariar esse pressuposto. Bem, eu diria esse sofisma. Certa vez exarei o aforismo a um colega alemão "sem trabalho, não se pode viver", ao qual ele retrucou, incluindo a necessária ressalva: "sem trabalho, não se pode pagar o viver". E eu pensando que dirigia a palavra a um dos representantes de eficiência profissional no mundo... Imagens, apenas imagens. Mas podendo escolher, fico com a temperatura mais baixa para atividades desconfortáveis. Agasalhar-se no frio é como sentir o próprio corpo. A sensação de ter o corpo mais perto de si traz algum conforto a mais.

Estar à frente da televisão e de outras telas parece entrar no contexto do conforto. Li uma interessante reportagem no Estadão, feita por Danilo Casaletti ("Por que nos dá tanto prazer e conforto rever filmes e séries?", 14/5) em que entrevista especialistas que buscam explicar esse fato. Descubro que estou longe de ser o único que assiste repetidamente aos mesmos filmes e séries. Que bom! Isso justifica também a coleção de DVDs para revê-los a qualquer momento, não dependendo de estarem no streaming (e pagar por isso) ou entrarem na programação da tv. Sem esquecer os sites que compilam erros dos filmes, um estímulo a mais para os amantes da arte reverem e prestarem mais atenção em busca daquela pecinha fora de lugar ou erro de continuidade que ninguém ainda viu. Cito um deles aqui, o MovieMistakes: https://www.moviemistakes.com/. Reprises e rever os mesmos filmes... Conforto segundo uns, busca do que de melhor já foi produzido, segundo outros.

Comentários

  1. Adorei o texto.Tambem nasci no frio.Junho

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  2. A convivência com gatos é sempre interessante. Com bípedes, nem sempre… (PSV)

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  3. Parabéns pelo texto Adilson, gostei muito mesmo

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  4. Me senti dentro do texto. Fora o felino, que não tenho próximo, mas o frio…. Ah o frio ! Gosto dessa época , também nasci em junho, ver e rever filmes, séries . Bem assim. Parabéns pela forma da escrita Adilson, e obrigada por me enviar.

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  5. Amei o texto e o tema. Gosto do frio, sinônimo de aconchego (sem me referir aos que vivem nas ruas, sejam quais forem as suas razões e pelos quais a gente também sofre). Mas, no conforto, o frio é bom....um filme....um vinho.
    Maria Felim

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  6. O frio é mesmo um convite para ficarmos assistindo e reassistindo tudo que gostamos. Ótimo Adilson.

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  7. Amei.Tenho gatos e é bem assim, vão ocupando espaços.

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  8. friozinho de outono -
    um gato, um filme, outro sonho...
    e muitos poemas!


    - Clarice Villac
    23.05.2023

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  9. Parabéns, o felinos ou miaus, gostam de se aconchegar. A minha gatanheira vez o outra se aconchega no braço estendido que desenrolo em minha cama durante a noite.

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