Reflexivos

A sensação de leitura é diferente para cada um e é isso que torna o enfrentamento de textos uma experiência única. Tenho me acostumado à leitura em formato digital, na tela do computador. Não agrada tanto, mas há situações sem outra alternativa, tal como os artigos científicos. Livros clássicos estão disponíveis nesse formato, muitos de acesso gratuito por terem vencido os prazos legais de direito autoral. Oportunidade que se aproveita, portanto. Mas deparei com uma interessante análise de Carlos Eduardo Lins da Silva, professor especialista na área de comunicação, que aponta, junto à sabida decadência da circulação de jornais impressos, estudos recentes que mostram a maior eficiência da leitura em papel do que a realizada em meio digital. Vale a leitura e audição de sua entrevista no site do Jornal da USP: https://jornal.usp.br/radio-usp/a-decadencia-na-circulacao-do-jornal-impresso/. Assim, no conflito/atrito entre o grafite e a celulose, como já ousei descrever em poema, fico com a impressão material, justificando-me, mais uma vez, pelo volume excessivo de livros e papéis que me cercam.

Creio que por esses dias estão comemorando o centenário da Semana de Arte Moderna de 22. Confesso que me divirto com bairrismos entre paulistas e cariocas sobre a importância do evento, quando na verdade quero é mais saber de detalhes do acontecimento, os a favor, os contras e os muito pelo contrário também. Cultura é isso, embate de ideias e reflexão sobre acontecimentos que possam - ou não - trazer uma nova estética para a sociedade. É difícil que movimentos duradouros tenham um marco exclusivo de acontecimento, de origem, de datação, mas é importante que sejam assim noticiados para facilitar seu estudo e mesmo sua contestação. Os rótulos de parnasiano, pré-modernista e modernista pipocam a toda instante, algumas vezes para criticar um determinado autor ou artista, outras para tentar situá-lo como à frente de seu tempo ou justificar porque não estava lá naquele dia, naquele evento que foi considerado, posteriormente, a marca do modernismo no Brasil. Efemérides muitas, meu quinhão primeiro. Lembro ainda que o ano consagra o centenário de José Saramago e da morte de Lima Barreto, para ficarmos em duas das significativas personalidades no âmbito literário.

Reflexivos os textos sempre são. Mas os verbos parecem que estão deixando de sê-lo. Irritou-me e surpreendeu-me no âmbito universitário, tanto por formandos quanto por formadores, dizerem sobre os alunos que formavam em determinado ano (sic). Sim, a marca de estranheza é importante, pois não falam formavam-se, omitindo a necessária partícula reflexiva, mudando a estrutura gramatical da frase. Chegamos à vacinação e todos tornaram-se enfermeiros. Novamente: eu me vacinei. Eu não vacinei porque não sou profissional habilitado a enfiar a agulha em ninguém. Eu levei minhas filhas para se vacinarem pela mesma razão. A charge de Claudio Mor na Folha de S. Paulo desta semana retrata uma professora de máscara apontando para uma lousa com a conjugação do verbo vacinar-se. Os alunos prestam atenção e ela ensina o óbvio da prevenção e resgata a abandonada forma reflexiva do verbo vacinar. Quem vacina é a enfermeira, o enfermeiro, repito. Nós nos vacinamos. O Lugar de Fala de dezembro foi sobre angústia e minha contribuição saiu somente hoje com data de dois meses atrás: https://revistacult.uol.com.br/home/angustia-do-missivista-contumaz/. No meio das angústias não faltaram partículas reflexivas de verbos. Seria um sinal: abrimos mão da reflexão, dos verbos e a nossa?

Comentários

  1. Compartilho a estranheza de encontrar bairrismos no centenário da Semana de Arte Moderna. O que me parece muito pouco moderno. Até o grande Ruy Castro resvalou nisso, embora tenha brilhado, no Roda Viva.
    Quanto aos livros, concordo que o papel ainda atrai mais. Mas pode ser que o aproveitamento nas telas seja uma questão de hábito. O importante, mesmo, é ler livro, não só mensagens.

    ResponderExcluir
  2. Também os torcedores de futebol sempre são eles que fazem gols ou ganham no jogo

    ResponderExcluir
  3. Ótimos Parágrafos: sobre o centenário da Semana de Arte Moderna , a leitura em livros e jornais impressos ( que eu prefiro), e a orientação para a escrita correta do verbo.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

É Praga!

Observações

Bomba natalina