Rimas rumos

A trova exige rimas perfeitas, aprendi com a Myrthes Masiero da Academia de Letras de Lorena. Louca e boca não rimam de forma harmônica, porém seu uso em canções é frequente, desde "quando tão louca, me beija na boca...", na voz do cantor Wando, até "não faça papel de louca pra não haver bate-boca...", de Chico Buarque. A poesia está presente, pois. O popular que admira a redução e a abreviação também levou a substituição do c pelo k, contaminado talvez pela simplificação que ocorre quando do uso do dígrafo qu, k esse que foi readmitido em nosso alfabeto, mas introduziu um desnecessário acento para resultar em "lôka" e seu congênere "lôko", comum em dizeres eletrônicos modernos. Um pouco de submissão aos ditames da língua de Shakespeare se revela, o mesmo que induz a grafar "disk-pizza" para economizar aquele qu sonoro, mas com palavra inglesa inexistente, pois seria dial-pizza a tradução correta para acessar - pelo abandonado telefone ou moderno aplicativo - o uso de empreendedores modernos que nos trazem o alimento pedalando suas "bikes" ou sinuosamente pelo trânsito conduzindo suas motos. Todos empregados sem rumo e sem patrão, ao menos aos olhos das leis trabalhistas.

Essa marca com o circunflexo para fechar o "o" foi objeto do acento diferencial, já excluído em tempos antigos, redivivo agora com certas faculdades e permissividades. Por exemplo, forma pode ser também fôrma para diferenciar o aspecto do receptáculo. O Aurélio, autor do dicionário, já se irritava com a extinção de tal acento na reforma de 1971 e mantinha as duas grafias, apesar da norma culta indicar como não correta. Mais interessante ainda é que pau já foi "páo", com acento e terminando em "o", cuja diferenciação para pão era apenas a troca do acento pelo til. Carlos Gomes compôs muito graciosamente "Conselhos" fazendo um jogo entre as duas palavras que carrega seu significado completo quando entendida com a grafia da época: "... assim como dá pão pode dar páo!". Tal singelo nuance causa uma indexação equivocada na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional. Uma revista semanal que circulou pelo menos de 1905 a 1907 no Rio de Janeiro intitulada "O Pau" está indexada como "O Pão". Chamo a atenção porque por essa hemeroteca seguimos para achar escritos de outrora e para explicar a insanidade presente.

Na Academia Campinense de Letras, como atividade de abertura de 2020, o presidente da Biblioteca Nacional, Rafael Nogueira, fez uma apresentação sobre sua carreira profissional e o que entende por uso do espaço cultural daquela instituição. É difícil tecer comentários à luz das questões políticas envolvidas, mas pude questioná-lo sobre alguns dos equívocos na indexação de materiais, como o que relatei, e outros que até impedem a busca por aquele material ainda não conhecido de Lima Barreto, Machado de Assis ou Euclydes da Cunha. Ele, de forma protocolar, disse para eu enviar e-mail, etc e tal, o que já fiz com a costumeira ausência de resposta. Importante dizer que tal esclarecimento é também um caminho para facilitar pesquisas de outros, uma vez que a produção e o aprimoramento de conhecimento deveriam estar à frente na condução de tais instituições culturais.

Comentários

  1. As questões fonéticas e ortográficas do nosso idioma são sempre motivo para muita conversa, e sempre curiosa. Ver por exemplo as cronicas do excelente Sergio Rodrigues, na Folha de S. Paulo. Quanto à importância das bibliotecas, em nosso país, há muito a ser feito, e não só no campo da pesquisa.

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  2. Muito bons textos, meu amigo. A Academia de Letras de Lorena agradece sua valorosa presença em seus quadros, pois você nos engrandece. Abraços literários e fraternos.

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  3. Caríssimo Adilson, fantástico este vosso artigo. Enriquecedor. Aprendi muito em três parágrafos.
    Quero compartilhar com todos o meu blog: www.entrearvoresememorias.blogspot.com

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